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O século da IA expõe o alto preço para quem não entender a tecnologia

by Fesouza
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Imagine você usar o celular o dia todo, acessar redes sociais, pedir comida por aplicativo e assistir a vídeos. Você está conectado, certo? Não necessariamente. Uma séria problemática atual não é quem está fora da internet, mas sim quem está dentro sem entender a lógica que move esse ambiente.     
 

No contexto da inteligência artificial, essa questão fica ainda mais nítida.

Profissionais que ignoram a IA entregam, sem necessariamente ter ciência, o controle de suas escolhas. Disponibilizam até informações sobre suas carreiras para algoritmos os quais, muitas vezes, não os entendem bem ou sequer os enxergam de forma completa. Essa é a essência do novo analfabetismo digital.     

Metade das pessoas diz que não entende IA mesmo utilizando intensamente serviços digitais. Essa combinação de uso acentuado com pouca compreensão é perigosa. Torna pessoas vulneráveis a manipulações sutis, decisões automáticas e muitas vezes errôneas, além de possibilitar vieses “ocultos”.

O conceito de alfabetização digital, tal como a maioria das pessoas compreende, parou em habilidades como navegar em sites, usar aplicativos, produzir conteúdo básico e proteger senhas. Isso já se tornou insuficiente.   

A nova fronteira passa por alfabetização em inteligência artificial: entender, ainda que em nível conceitual, o papel de dados, algoritmos, modelos preditivos, vieses, métricas de acurácia e limites das máquinas. Esse vocabulário decide crédito, vagas de emprego, notícias que aparecem nas páginas de mídias sociais, ofertas de consumo, segurança pública e até a relação com o Estado.   

 

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A Inteligência Artificial vem se tornando uma nova fronteira na alfabetização digital. (Fonte: Getty Imagens)

Em muitos casos, a pessoa alfabetizada em IA não se transforma em especialista técnico, porém adquire capacidade de formular perguntas incômodas, exigir transparência e recusar a posição de mero objeto de cálculo.

O contraste entre adoção acelerada de IA e baixa compreensão aparece com nitidez nos números. O AI Index 2025, do Instituto de IA Centrada em Humanos de Stanford, registra que 78% das organizações declararam uso de IA em 2024, salto expressivo em relação aos 55% do ano anterior.   

A tecnologia já atua como infraestrutura discreta de negócios, serviços e governos. É perceptível que o mundo corporativo corre na frente, enquanto cidadãos e trabalhadores permanecem sem instrumentos para interpretar o que essas soluções fazem com seus dados e destinos.

O Brasil oferece um retrato emblemático do novo analfabetismo digital. Segundo a PNAD Contínua TIC 2024, do IBGE, 89,1% das pessoas com 10 anos ou mais utilizaram a internet nos três meses anteriores à entrevista, o que representa cerca de 168 milhões de brasileiros.   

A exclusão dramatizada pelo símbolo do “desconectado” cede lugar a algo mais complexo: a vasta maioria encontra-se conectada, porém parte expressiva continua entregue à lógica da plataforma sem qualquer domínio crítico. As desigualdades acendem um alerta.   

Entre pessoas sem instrução, apenas 46,0% utilizaram a internet; já entre quem tem ensino superior incompleto, o percentual alcança 97,9%, e entre aqueles com superior completo, 97,2%.   

Quando a camada de IA se torna onipresente sobre essa base desigual, a assimetria de informação converte pobreza educacional em pobreza de autonomia diante do algoritmo.

A alfabetização em IA implica um conjunto de competências concretas. Compreensão básica de como dados alimentam modelos. Capacidade de suspeitar de padrões excessivamente personalizados em feeds e recomendações. Leitura atenta de políticas de privacidade e termos de uso, inclusive com pressão por versões claras em linguagem comum.   

Entendimento de que vieses presentes em dados históricos tendem a se reproduzir em decisões algorítmicas, com impacto maior sobre grupos historicamente discriminados. Habilidade para conectar casos individuais a estruturas sistêmicas, recusando a narrativa de que “o algoritmo errou só comigo”.

Do lado das organizações, a responsabilidade cresce na mesma proporção da influência. Empresas, governos e instituições educacionais com acesso a especialistas em IA precisam investir em programas de formação voltados ao público leigo, para além das tradicionais ações de marketing.   

Transparência sobre uso de IA em processos de seleção, concessão de crédito, definição de tarifas e moderação de conteúdo não representa ameaça competitiva; representa compromisso mínimo com cidadania digital.   

Companhias globais e instituições de ensino superior já acumulam conhecimento suficiente para construir trilhas didáticas sobre IA acessíveis, em português, com foco em públicos variados, incluindo adultos fora da escola formal.

 

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Segundos estudos recentes 89% dos brasileiros que estão conectados, não estão familiarizados com a Inteligência Artificial. (Fonte: Getty Imagem)

A nova divisão digital se desenha, portanto, entre quem enxerga a IA e quem apenas vive dentro dela. De um lado, cidadãos capazes de formular perguntas técnicas em linguagem simples, de pressionar por explicações, de recusar usos abusivos, de exigir regulação forte e transparência radical.   

De outro lado, pessoas que atribuem ao destino decisões tomadas por modelos probabilísticos, que confundem desinformação sintética com opinião legítima, que assistem à própria autonomia esvair-se em notificações e sugestões irresistíveis.   
 

A primeira camada constrói imunidade; a segunda permanece vulnerável como alvo preferencial de qualquer campanha de manipulação.

 

O novo analfabetismo digital não surge como problemática inevitável, e sim como resultado de escolhas. Governos que adiam políticas de educação em IA, empresas que tratam transparência como ameaça e sistemas de ensino que hesitam em atualizar currículos reforçam a assimetria entre quem controla a tecnologia e quem apenas a consome.   

Alfabetização em inteligência artificial precisa ocupar o mesmo patamar de prioridade de leitura e escrita. Sem isso, a pessoa até lê contratos, porém não compreende que algoritmos já decidiram o limite do crédito; enxerga o feed, porém não percebe que cada rolagem alimenta um modelo; vota, porém não distingue voz humana de voz clonada.

A IA é a camada estrutural da vida no século XXI. Se tratarmos a alfabetização em IA como um direito de todos, preservamos a autonomia. Se a empurrarmos para um nicho técnico, aceitaremos viver sob a tutela algorítmica.   

Em termos claros: quem ignora a inteligência artificial converte a própria liberdade em uma variável de cálculo para os outros. A defesa da nossa cidadania passa por educar, regular e exigir transparência. Sem esse tripé, o analfabetismo digital vence e nos transforma em meros espectadores das decisões que definem nosso futuro. 

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