Era noite de 18 de junho de 1178 em Canterbury, na Inglaterra, uma cidade silenciosa e fria. O Sol havia se posto há pouco e o céu ainda guardava o brilho do crepúsculo. No pátio de um mosteiro, um grupo de monges descansava após as orações, os olhos voltados para o fino crescente da Lua, suspenso no horizonte. A luz prateada recortava a silhueta das árvores distantes quando, de repente, algo extraordinário aconteceu. O chifre superior do crescente se dividiu em dois, e do meio dessa divisão surgiu o que só poderia ser descrito como uma tocha flamejante, cuspindo brasas, fagulhas e labaredas. Os monges observaram, atônitos, enquanto a Lua parecia se contorcer, como se estivesse ferida.
Estranho? Mas pelo menos cinco monges que presenciaram a cena juraram, sob a honra, que relataram exatamente o que viram, sem exageros. Aquele, sem dúvidas, seria um dos relatos mais intrigantes da história da observação lunar, e que só seria explicado 800 anos depois.

O registro chegou até nós graças a Gervase de Canterbury, cronista do mosteiro que, intrigado com o testemunho dos companheiros, anotou cada detalhe. Em sua crônica, ele descreveu o fenômeno com a minúcia que a época permitia, preservando palavras que atravessariam oito séculos para intrigar cientistas modernos. Numa tradução livre, Gervase escreveu que “do ponto de divisão saltou uma tocha ardente, projetando chamas, carvões e faíscas a grande distância”, e que a Lua, “como uma cobra ferida”, se contorcia antes de retomar seu aspecto normal.
Para nós, acostumados com transmissões ao vivo, câmeras exclusivas e uma variedade de instrumentos científicos, um depoimento surreal como este, pode parecer pouco. Mas naquela época, mesmo um astrônomo teria dificuldades para descrever aquilo. Vale lembrar que no Século XII nosso planeta era considerado inviolável e o centro do Universo. Não existiam asteroides e a Lua era perfeita, pois ninguém nunca havia visto sequer uma cratera em sua superfície. Sem a tecnologia e o conhecimento que temos hoje, cada registro histórico é como um fóssil: uma pista rara, frágil e valiosa, que nos ajuda a compreender os eventos do passado e até mesmo, prever o que ocorrerá no futuro.
A Astronomia está repleta de histórias onde as anotações detalhadas e registros históricos foram base para descobertas fundamentais séculos depois. Foi estudando registros antigos que os babilônios encontraram o ciclo de recorrência de eclipses a cada 18 anos, o chamado “Ciclo de Saros”. Da mesma forma, Halley percebeu que um grande cometa reaparecia a cada 76 anos e com isso acabou desvendando a natureza desses corpos gelados. E sem Gervase, provavelmente esse estranho fenômeno observado pelos monges de Canterbury, teria desaparecido para sempre, junto a tantos outros esquecidos por nossos antepassados.
Durante séculos, o relato foi uma curiosidade medieval. Alguns o viam como uma metáfora religiosa, outros como um erro de interpretação. Talvez uma nuvem distorcendo a forma da Lua ou um meteoro, em nossa atmosfera, criando uma ilusão de ótica. A verdade é que, sem evidências, aquele acontecimento seria apenas um lance polêmico em uma partida cósmica sem VAR.
Foi somente no século XX que o enigma foi finalmente explicado de forma convincente. O geólogo lunar Jack Hartung, decidiu revisitar aquele intrigante depoimento, mas agora, usando o conhecimento moderno sobre impactos cósmicos. Hartung suspeitava que os monges poderiam ter flagrado o exato momento em que um grande asteroide teria atingido a Lua. Cruzando a localização sugerida pelo texto de Gervase com fotografias obtidas pelas missões Apollo e Lunar Orbiter, o geólogo encontrou uma cratera que poderia confirmar sua tese, a cratera Giordano Bruno.

Com cerca de 20 quilômetros de diâmetro, a cratera está localizada no lado oculto da Lua e é cercada por um sistema de raias brilhantes que se estendem por centenas de quilômetros. O brilho de suas raias sugere que o material é fresco, ou seja, que a cratera é jovem.
Hartung calculou que o impacto que criou Giordano Bruno teria sido exatamente o tipo de evento capaz de gerar o espetáculo descrito por Gervase: um cone de ejeção bloqueando parte do crescente, material incandescente refletindo a luz do Sol, poeira e gases criando distorções que fariam a Lua parecer tremer. Se for verdade, os monges de Canterbury podem ter testemunhado um dos raríssimos grandes impactos lunares, numa observação única na história.
Uma conclusão espetacular para uma história fantástica onde a ciência desvenda mais um grande mistério da humanidade! Só que não…
A teoria de Hartung é muito bem fundamentada e parece bastante conclusiva. Só que em 2008, a sonda japonesa Kaguya fez uma contagem de pequenas crateras nas raias de material ejetado da Giordano Bruno, e com isso constatou que ela não é tão jovem assim. A cratera teria cerca de 4 milhões de anos, quase nada em termos geológicos, mas uma eternidade comparada aos 800 anos da observação histórica.

E com isso, o problema foi “desresolvido”, o mistério “revendado” e o evento relatado pelos monges voltou a ser um enigma. Há quem diga que o fenômeno poderia ter sido causado por distorções atmosféricas ou mesmo por um impacto mais modesto. Estamos longe de um consenso, mas quem sabe tenhamos mais uma oportunidade de esclarecer essa história em breve.
É que em 2032, um asteroide descoberto no final do ano passado, o 2024 YR4, pode atingir a Lua. Talvez esse impacto proporcione uma visão espetacular, semelhante ao que foi observado há mais de 8 séculos. A probabilidade de que isso ocorra ainda é muito baixa, mas se ocorrer, será a melhor oportunidade da era moderna para observar um impacto dessa magnitude em nosso satélite natural.
Ainda não temos certeza se os monges de Canterbury presenciaram o dia em que a Lua foi atingida por um grande asteroide. Mas, se isso ocorrer em 2032, não dependeremos apenas de depoimentos criativos de monges medievais. Teremos telescópios de todo o mundo apontados para a Lua, sondas em órbita capazes de registrar cada milissegundo e transmissões ao vivo, exibindo — pela primeira vez — a formação de uma nova cratera em nosso satélite natural. E, mesmo que isso não ajude a compreender o que foi visto em 1178, será, literalmente, um espetáculo histórico… com direito a VAR!
O post A noite em que a Lua pegou fogo: O Enigma de 1178 apareceu primeiro em Olhar Digital.