A antiga cidade de Troia, localizada no sítio arqueológico de Hisarlik, no noroeste da Turquia, deixou de ser considerada apenas uma lenda literária no século XIX, quando as escavações iniciadas por Heinrich Schliemann, na década de 1870, revelaram evidências concretas de um assentamento real.
Os trabalhos arqueológicos identificaram nove grandes camadas de ocupação, que contam uma história de quase 4.000 anos de continuidade. As fases mais antigas, conhecidas como Troia I–V, mostram uma fortaleza da Idade do Bronze, com muralhas espessas que atestam sua importância desde cerca de 3000 a.C. Já o período de Troia VI–VII, entre aproximadamente 1700 e 1180 a.C., corresponde ao auge da cidade, com arquitetura monumental, portões impressionantes e evidências de intenso comércio com o mundo micênico, visíveis em cerâmicas de estilo grego encontradas no local.
“A descoberta da cidade de Troia representa um marco na história da arqueologia e na relação entre mito e ciência. Por séculos, Troia foi considerada uma cidade lendária, descrita nos poemas épicos de Homero — a Ilíada e a Odisseia — como palco da famosa Guerra de Troia. No entanto, foi apenas no século XIX que a busca por essa cidade ganhou contornos científicos, impulsionada pelo espírito explorador e pelo avanço das técnicas arqueológicas”, explica o professor doutor Ângelo Alves Corrêa, do curso de Arqueologia da Universidade Federal do Piauí (UFPI).
Mas isso não significa que a descoberta das ruínas encerrou os mistérios desse local lendário. A história de Troia ainda tem muitas lacunas e o mito se confunde com a verdade em muitos momentos. Quer entender o que sabemos de Troia? A série especial do Olhar Digital sobre cidades perdidas desembarca hoje no noroeste da Turquia, onde estão as ruínas de uma das mais famosas civilizações do passado.

O mito de Troia
Boa parte da fama de Troia vem de um nome: Homero, que retratou a cidade em suas obras épicas: Ilíada e Odisseia. A lenda diz que a Guerra de Troia tem origem em uma disputa entre as deusas Hera, Atena e Afrodite. Páris, príncipe troiano, é escolhido para decidir qual delas é a mais bela. Seduzido pela promessa de receber a mulher mais bela do mundo, ele concede o título a Afrodite. Em troca, a deusa o ajuda a raptar Helena, rainha de Esparta e esposa do rei Menelau, levando-a para Troia.
Esse ato desencadeia uma guerra de grandes proporções. Os gregos, liderados por Agamenon (irmão de Menelau), reúnem heróis como Aquiles, Odisseu e Ajax e partem em uma expedição militar contra Troia. O cerco dura dez anos e é marcado por episódios célebres:
- A ira de Aquiles, que se afasta do combate após um conflito com Agamenon;
- O duelo mortal entre Aquiles e Heitor, o maior herói troiano;
- A intervenção constante dos deuses, que tomam partido dos troianos ou dos gregos.

O desfecho mítico inclui a morte de Heitor, o saque de Troia, o retorno difícil dos heróis gregos (como Odisseu, que vaga por dez anos antes de chegar a Ítaca) e a fuga de Enéias, que, segundo a tradição romana posterior, estaria ligado à fundação mítica de Roma. Assim, a história torna-se símbolo de astúcia, destino e dos custos humanos da guerra.
Essa história, ou pelo menos boa parte dela, é mito (inclusive o filme). Isso não significa, entretanto, que temos muito mais repostas sobre como foi a Troia real.
Pesquisas recentes e a Troia histórica
Pesquisas arqueológicas modernas, coordenadas por instituições como a Universidade de Çanakkale em colaboração com equipes internacionais, confirmam que o sítio de Hisarlik abrigou uma cidade complexa e duradoura. Foram identificadas nove camadas principais de ocupação, da Idade do Bronze (c. 3000 a.C.) até o período bizantino (c. 1300 d.C.).
Segundo o arqueólogo Rüstem Aslan, Troia foi muito mais do que o cenário de uma guerra de dez anos: tratava-se de uma cidade-estado estratégica, que controlava o acesso ao Mar Negro e prosperava graças ao comércio, à metalurgia e a sofisticadas redes de alianças diplomáticas.
As escavações em Hisarlik revelaram múltiplas camadas de ocupação, indicando que o local foi habitado por cerca de quatro milênios. A camada conhecida como Troia VII é frequentemente associada à cidade descrita por Homero, por apresentar sinais de destruição compatíveis com um conflito. Pesquisas mais recentes, no entanto, sugerem que Troia pode ser ainda mais antiga, com evidências de ocupação desde 3.500 a.C., o que amplia significativamente o horizonte histórico da região.
Professor doutor Ângelo Alves Corrêa, do curso de Arqueologia da Universidade Federal do Piauí (UFPI)
A Troia que emerge dessas escavações era uma potência regional, com influência cultural e econômica muito maior do que se supunha. Sua localização, próxima ao estreito de Dardanelos, permitia o controle das rotas comerciais entre o Mediterrâneo e o Mar Negro, o que ajuda a explicar por que tantas potências teriam interesse em dominá-la.
Evidências de uma metrópole cosmopolita
Entre as principais descobertas arqueológicas, destacam-se:
- Sistemas avançados de gestão da água, com aquedutos e cisternas, capazes de sustentar uma população estimada em cerca de 10.000 habitantes.
- Bairros industriais especializados, voltados à produção de cerâmica e à metalurgia do bronze.
- Indicadores de comércio de longa distância, incluindo artefatos vindos do Egito, da Mesopotâmia e da região do Cáucaso.
- Arquitetura monumental, com fortificações que se estendiam por quase 2 km em torno da cidade.

Na camada associada a Troia VIIa, arqueólogos identificaram fortes sinais de destruição violenta por incêndio e vestígios de combate, datados em torno de 1180 a.C., período que se aproxima da data tradicionalmente atribuída à Guerra de Troia na tradição homérica. Esses achados não “provam” o mito em detalhes, mas sugerem que uma grande destruição realmente ocorreu naquele momento.
Tecnologias de radar de penetração no solo revelaram que a área urbana era mais extensa do que se pensava, enquanto análises de DNA indicam que a população era majoritariamente anatoliana, e não grega, reforçando a ideia de Troia como uma cidade local poderosa em contato com diversos povos.

Troia é uma cidade perdida?
De acordo com Ângelo Corrêa, “o termo ‘cidade perdida’ costuma designar locais com um número significativo de construções feitas com materiais não perecíveis, cuja localização permaneceu desconhecida por longos períodos para os pesquisadores”.
O abandono dessas cidades resultou tanto de fatores climáticos, como secas, quanto sociais, como conflitos, migrações e reorganizações territoriais. Em alguns casos, mudanças ideológicas também influenciaram, com populações questionando a autoridade de nobres ou reis e buscando formas de vida mais autônomas. Esses processos graduais levaram ao esquecimento de antigas cidades, muitas vezes cobertas pela vegetação ou soterradas.
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No caso de Troia, talvez o termo que a melhor descreva seja “cidade achada”, já que ela nunca foi esquecida, apesar de ter ficado desaparecida por séculos, mas suas ruínas, sempre estiveram ali.

A ligação entre o mito e a realidade
Os arqueólogos tendem a interpretar a Guerra de Troia descrita por Homero como uma elaboração literária inspirada em conflitos reais. O mais provável é que o poeta tenha condensado e estilizado diversos confrontos ocorridos ao longo de séculos pelo controle do estratégico estreito de Dardanelos.
Há evidências de destruição por incêndio em mais de uma camada, indicando que a cidade foi sitiada e reconstruída diversas vezes. Isso sugere uma longa história de guerras e disputas, que pode ter alimentado a memória coletiva e dado origem à narrativa épica.
Assim, o mito não é um relato histórico fiel, mas também não é pura imaginação: ele parece dialogar com uma realidade de conflitos, alianças e quedas sucessivas de uma cidade que, de fato, existiu e desempenhou um papel central na região. E, mesmo com todas as descobertas arqueológicas, o fascínio pela Troia de Homero continua vivo.
“A descoberta de Troia não apenas aproximou mito e história, mas também exemplificou como a arqueologia pode transformar narrativas lendárias em conhecimento concreto. Hoje, Troia é reconhecida como Patrimônio Mundial da UNESCO e continua a ser objeto de estudo, revelando novas camadas de significado sobre as civilizações que ali floresceram. A trajetória de sua descoberta ilustra o poder da curiosidade humana e da ciência em desvendar os mistérios do passado”, finaliza o professor.
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