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Angkor, a ‘cidade hidráulica’ que dominou a água – e desapareceu por causa dela

by Fesouza
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Em meio à selva do Camboja, torres de pedra de Angkor Wat emergem como ossos de uma civilização que dominou a água e ergueu a maior metrópole do mundo pré-industrial. Ao longo de séculos, o Império Khmer canalizou rios, construiu reservatórios gigantes e criou um sistema hidráulico tão sofisticado que, visto do alto, parecia uma cidade feita de espelhos d’água. Essa engenharia transformou a paisagem e sustentou uma população de mais de 750 mil pessoas.

Hoje, as ruínas de Angkor são símbolo de mistério e grandiosidade. Chamam-na de “cidade perdida”, mas ela nunca esteve totalmente perdida. Para o povo Khmer, a região sempre foi sagrada. O que se perdeu foi o segredo de como um império tão avançado desapareceu.

A resposta, revelada por arqueólogos e cientistas, está na própria força que o sustentou: a água – a princípio uma bênção, mas eventualmente a maldição que arruinou uma das maiores civilizações da Ásia.

A metrópole que brotou da selva e virou o coração do Império Khmer

No coração do Sudeste Asiático, Angkor foi o centro do poderoso Império Khmer, que dominou vastas áreas do atual Camboja, Laos, Tailândia e Vietnã entre os séculos nove e 15. 

Em seu auge, abrigava cerca de 750 mil habitantes e se espalhava por uma área de 400 quilômetros quadrados, tornando-se o maior núcleo urbano do mundo pré-industrial. 

Vista áerea de templo Angkor Wat
Entre as construções mais emblemáticas do Império Khmer, está Angkor Wat – monumento religioso com 400 acres de extensão (Imagem: CamNet/Shutterstock)

Mais que uma cidade, Angkor era o símbolo de um império que uniu religião, poder e tecnologia numa escala inédita.

O início dessa civilização está ligado a um mito de origem sagrada. No Monte Phnom Kulen, o rei Jayavarman II foi coroado “devaraja”, o Deus Rei, em 802 d.C., numa cerimônia de purificação em águas consideradas divinas. 

Esse ato marcou o nascimento espiritual e político do império e definiu a relação dos khmers com a água – vista não só como recurso vital, mas como elo entre o terreno e o divino. A partir dali, o culto à água se espalhou por templos, esculturas e rituais, moldando a cosmologia Khmer.

Entre as construções mais emblemáticas está Angkor Wat, um dos maiores monumentos religiosos do planeta, com 400 acres de extensão. Dedicado originalmente ao deus hindu Vishnu, o templo impressiona tanto pela escala quanto pela precisão geométrica de seus relevos e alinhamentos astronômicos. 

Ao redor dele, templos como Bayon e Ta Prohm completavam um cenário monumental envolto por florestas e canais. Juntos, formavam um império urbano cuja harmonia entre engenharia, espiritualidade e natureza ainda espanta arqueólogos.

A ‘cidade hidráulica’ que usou engenharia para mover rios e erguer templos

Nos anos 1950, o arqueólogo francês Bernard Philippe Groslier chamou Angkor de “Cidade Hidráulica”, ao perceber que seu esplendor não se devia apenas aos templos, mas a uma imensa rede de canais, diques e reservatórios artificiais. 

Décadas depois, em 2012, a tecnologia LiDAR – um escaneamento a laser aéreo – revelou a verdadeira dimensão desse sistema: mais de mil quilômetros quadrados de estruturas projetadas para coletar, armazenar e distribuir água. 

Era uma infraestrutura urbana tão sofisticada que, vista do espaço, lembrava o mapa de uma metrópole moderna, com artérias de irrigação no lugar de avenidas.

Vista áerea de templo Angkor Wat
O arqueólogo francês Bernard Philippe Groslier chamou Angkor de ‘cidade hidráulica’ em 1950 ao observar a imensa rede de canais (Imagem: William.Visuals/Shutterstock)

O sistema não servia apenas para o sustento agrícola. Ele era também uma ferramenta logística e estrutural. Os canais, por exemplo, foram usados para transportar cerca de dez milhões de blocos de arenito, cada um pesando até uma tonelada e meia, usados na construção dos templos. 

Já os barays, grandes reservatórios como o West Baray (com 7,8 km de comprimento por 2,1 km de largura), acumulavam volumes de água equivalentes ao que uma cidade europeia inteira ocuparia na época. Esses reservatórios regulavam as cheias e abasteciam a população durante os períodos de seca.

Os engenheiros khmers também desenvolveram soluções que ainda surpreendem especialistas. Descobriram que misturar areia e água gerava fundações estáveis o suficiente para sustentar toneladas de pedra, por exemplo. Além disso, projetaram fossos ao redor dos templos para manter a umidade constante do solo e evitar rachaduras. 

Num clima dominado por monções intensas e longos períodos de estiagem, a gestão da água foi a chave da estabilidade. E também o segredo que manteve Angkor em pé por séculos.

Quando o clima virou inimigo: o colapso por secas e enchentes

Durante séculos, o sistema hidráulico manteve Angkor em equilíbrio. Mas essa mesma rede de canais e reservatórios, que sustentava o império, acabou se tornando seu ponto mais vulnerável. 

Pesquisas conduzidas pelo climatólogo Brendan M. Buckley, da Universidade Columbia, revelaram que o colapso de Angkor foi desencadeado por mudanças climáticas extremas ocorridas entre os séculos 14 e 15, segundo a instituição

A análise de anéis de árvores coletados em florestas remotas do Camboja mostrou duas megassecas prolongadas – uma de 30 anos e outra de 20 anos – intercaladas por períodos de chuvas torrenciais e inundações devastadoras.

Entrada do templo Ta Prohm, de Angkor
Entrada do templo Ta Prohm (Imagem: Mark R Croucher/Shutterstock)

Essas variações climáticas romperam o delicado equilíbrio do sistema de água. As secas prolongadas esvaziaram reservatórios e cortaram o abastecimento agrícola, enquanto as monções violentas destruíram canais e diques. 

O resultado foi o colapso físico e funcional da “cidade hidráulica”. Para tentar contornar a crise, engenheiros khmers reduziram o tamanho dos principais reservatórios, mas as reformas chegaram tarde demais. Com a infraestrutura fragmentada e a economia agrícola em declínio, o império começou a se esvaziar lentamente.

O fim de Angkor não foi uma explosão repentina, mas uma erosão ocorrida ao longo de séculos. As secas e inundações repetidas, somadas às invasões siamesas e à ascensão de novas rotas marítimas de comércio, levaram à transferência da capital para Oudong, ao sul. 

Para os arqueólogos, a história de Angkor é hoje um dos exemplos mais antigos de colapso ambiental – uma civilização que, apesar de ter controlado a natureza até certo ponto, acabou derrotada por ela.

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Da ‘cidade perdida’ ao patrimônio que respira

Apesar da aura de mistério que envolve Angkor, ela nunca esteve realmente perdida. O povo Khmer continuou a viver nos arredores, com cultivo de arroz e rituais feitos nos templos mesmo depois do declínio do império. 

O mito da “descoberta” surgiu apenas no século 19, quando o explorador francês Henri Mouhot visitou a região (em 1860) e descreveu as ruínas cobertas pela selva – como se o local tivesse sido esquecido pela humanidade. 

Monge entrando em templo de Angkor
O povo Khmer continuou a viver nos arredores de Angkor, mesmo depois do declínio do Império Khmer (Imagem: isaxar/Shutterstock)

Na verdade, o que se perdeu foi o olhar ocidental sobre uma civilização que jamais deixou de existir. Hoje, historiadores e museus têm revisado esse discurso, reconhecendo o papel contínuo das comunidades locais na preservação do sítio arqueológico.

“O termo ‘cidade perdida’ costuma designar locais com um número significativo de construções feitas com materiais não perecíveis, cuja localização permaneceu desconhecida por longos períodos para os pesquisadores”, explica o professor doutor Ângelo Alves Corrêa, do curso de Arqueologia da Universidade Federal do Piauí (UFPI), ao Olhar Digital.

Corrêa afirma que a ideia de “cidade perdida” ganhou força nos séculos XIX e XX, em meio ao avanço do colonialismo europeu, do imperialismo e do surgimento da arqueologia como disciplina científica. 

Esse imaginário foi alimentado por narrativas de exploração e descoberta, muitas vezes romantizadas, que ignoravam o fato de que esses locais nunca estiveram realmente perdidos. “As populações locais sempre souberam de sua existência, utilizando-os como áreas de cultivo, pastagem ou como fonte de materiais para construção”.

A redescoberta internacional de Angkor inspirou uma nova era de restauração e pesquisa. Desde 1992, o sítio é reconhecido como Patrimônio Mundial da UNESCO, abrigando mais de 100 mil habitantes que ainda vivem e trabalham dentro do parque arqueológico. 

Após ser incluído na lista de patrimônio em perigo, Angkor foi restaurada e removida dessa categoria em 2004, graças ao trabalho da APSARA National Authority e à cooperação internacional. 

Entre 2009 e 2011, quando o Camboja enfrentou as piores inundações em 50 anos, o governo iniciou um projeto de reconstrução do antigo sistema hidráulico, restaurando canais e reservatórios que voltaram a abastecer a região.

Hoje, o legado de Angkor continua vivo – não apenas como atração turística, mas como infraestrutura essencial para a cidade moderna de Siem Reap. O antigo sistema de água, redesenhado por engenheiros há mais de 800 anos, ainda fornece irrigação agrícola, previne enchentes e estabiliza os templos

Entre a selva e os lagos, Angkor permanece uma lição monumental sobre equilíbrio e resiliência. Afinal, foi uma civilização que transformou a água em poder. E cuja história, séculos depois, ainda flui nas pedras que ela ergueu.

(Essa matéria também usou informações de BBC e Museu de História Natural de Utah.)

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