Biometria facial nos estádios representa ‘sérios riscos aos torcedores’, alerta especialista

A edição 2025 do Campeonato Brasileiro terá uma grande mudança para os torcedores a partir deste sábado (14): a obrigatoriedade de acesso por meio da biometria facial aos estádios com capacidade acima de 20 mil pessoas. A tecnologia já estava presente em alguns locais, mas agora será ampliada, conforme determina a Lei Geral do Esporte.

Melhorar a segurança e facilitar o acesso da torcida são algumas das vantagens promovidas, segundo as autoridades. Além disso, o sistema dificulta fraudes recorrentes como a falsificação de ingressos e o cambismo, e pode impedir a entrada de torcedores banidos pela justiça.

O Maracanã já utiliza a biometria facial no acesso dos torcedores. (Imagem: Getty Images)

Para saber os pontos positivos e possíveis melhorias que serão promovidas pela tecnologia, leia o texto abaixo do TecMundo! Na outra reportagem, nós falamos com empresas, instituições públicas e torcedores que apoiam a novidade.

Porém, o reconhecimento facial também divide opiniões e é cercado de polêmicas. Especialistas apontam que a tecnologia fere o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) ao coletar dados de menores e apresenta um alto índice de erros relacionados aos grupos marginalizados, tendo inclusive levado à prisão de um torcedor por engano.

Como vai funcionar a biometria facial nos estádios? Quais são os problemas? O que fazer para garantir a segurança dos dados coletados? O TecMundo apresenta, nesta matéria, respostas para estas e outras questões importantes.

Como funciona a biometria facial?

Prometendo agilizar a entrada nos estádios, a biometria facial substitui os ingressos físicos tradicionais, impressos ou em cartões, bem como os digitais, baseados em QR Code na tela do celular. Na hora de passar pela catraca, é necessário apenas posicionar o rosto em frente ao equipamento para ter o acesso liberado.

Mas para tanto, o torcedor precisa se cadastrar no sistema de vendas. O procedimento é simples e rápido, semelhante ao solicitado pelos bancos, incluindo tirar uma foto do rosto pelo celular e outra de um documento oficial, que pode ser a carteira de identidade, o passaporte ou a carteira de motorista.

Em seguida, há a verificação junto às bases de dados do governo para saber se a pessoa que fez o cadastro é, de fato, a dona do documento. Ao final, é possível realizar a compra do ingresso.

O mecanismo é utilizado no Maracanã desde 2024, antes da obrigatoriedade, assim como em outros estádios. Allianz Parque, Arena MRV, Beira-Rio, Arena do Grêmio, Castelão, Fonte Nova, São Januário e Nilton Santos são alguns dos que já iniciaram a implementação, estão testando ou utilizando o recurso em todos ou parte dos setores.

No Brasileirão 2025, os estádios Alfredo Jaconi (Juventude), Campos Maia (Mirassol) e Nabi Abi Chedid (Red Bull Bragantino) têm capacidade inferior a 20 mil pessoas e, portanto, não são obrigados a usar a tecnologia, mas isso não significa que ela não estará presente. A Vila Belmiro possui o mecanismo mesmo tendo público limitado a 16 mil pessoas.

De acordo com dados do projeto O Panóptico, cinco empresas controlam o fornecimento da tecnologia para os estádios brasileiros: Imply, Bepass, FacePass, Club System e Tik+. A maioria dos contratos está sob a administração de Bepass e Imply.

No Mineirão, a entrada dos torcedores ainda acontecia da maneira antiga, usando o ingresso no celular. (Imagem: André Dias/TecMundo)

Quais são os problemas com a tecnologia?

“A implementação de sistemas de reconhecimento facial em estádios de futebol apresenta sérios riscos à privacidade dos torcedores”. Quem afirma é o pesquisador de Assimetrias e Poder na Data Privacy Brasil, Vinícius Silva.

Em conversa com o TecMundo, o especialista da organização que promove a cultura de proteção de dados e direitos digitais listou problemas relacionados à tecnologia. Para ele, há falhas em diversas etapas do processo, que colocam as informações coletadas e os próprios torcedores em risco.

As complicações começam na coleta massiva dos dados, deixando-os expostos a vazamentos, principalmente se armazenados por empresas sem protocolos de segurança robustos. Além disso, os clubes podem usar as imagens dos torcedores em campanhas de marketing sem o consentimento deles, o que não é legal.

Vinícius também cita a integração com bancos de dados policiais, entre os quais o Banco Nacional de Mandados de Prisão (BNMP), como outro risco significativo. Para ele, isso transforma os estádios em espaços de vigilância em massa, nos quais os torcedores são monitorados para além do ambiente esportivo.

Tais práticas violam o princípio da finalidade específica da Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD), que determina a coleta apenas para objetivos bem definidos e não múltiplas finalidades. Outro princípio desrespeitado é o do consentimento explícito, com os torcedores obrigados a aceitar termos complexos sem a opção de recusa.

Viés algorítmico

De acordo com Silva, os sistemas de biometria facial apresentam um alto índice de viés algorítmico, quando a tecnologia produz resultados discriminatórios, outro grande problema do sistema. Pessoas trans, mulheres, negros e outros grupos marginalizados são os principais alvos dos erros.

Essas falhas acontecem devido à maneira com que os algoritmos de biometria facial em uso no Brasil são treinados. De modo geral, trata-se de tecnologias desenvolvidas em países como Estados Unidos e China, cujas populações são bem diferentes da nossa.

“Os bancos de dados utilizados para treinar os sistemas de reconhecimento facial não incluem rostos diversos, como pessoas negras, indígenas e trans, que tradicionalmente são subrepresentadas nesses conjuntos”, ressaltou. Como vários grupos demográficos do Brasil ficaram de fora, a possibilidade de erros é alta.

No ano passado, um caso de erro da biometria facial ganhou destaque, quando o torcedor do Confiança, João Antônio, foi detido enquanto assistia à final do campeonato sergipano. Em relato no X, ele contou ter sido abordado por oficiais afirmando que a tecnologia o identificou como uma pessoa com mandado de prisão em aberto.

Parece um delinquente, um foragido, mas esse aí sendo conduzido pela polícia SOU EU.

Sábado na final do campeonato sergipano passei uma uma situação que nunca imaginei que fosse possível e venho com vergonha e indignação compartilhar para que algo aconteça e isso não se repita.+ pic.twitter.com/bDsSZSGM75

— Simplesmente João Antônio (@joantoniotb) April 15, 2024

Constrangido, ele foi levado a uma sala da Arena Batistão, em Aracaju (SE), quando as autoridades constataram o erro após a conferência dos documentos. Diante da repercussão do caso, o governo de Sergipe suspendeu o uso do reconhecimento facial no estado, à época.

Uma pesquisa feita nos EUA indica que as mulheres negras são o público com maior possibilidade de enfrentar uma situação de erro da tecnologia. O levantamento indicou que os algoritmos de reconhecimento erram 34% a mais no caso delas, enquanto os erros relacionados aos homens brancos são inferiores a 1%.

Coleta de dados biométricos de crianças

O especialista também cita os riscos à proteção dos direitos de crianças e adolescentes. Ao coletar dados de menores, os clubes violam a Lei Geral do Esporte, que exige a identificação biométrica somente para maiores de 16 anos. A prática fere o artigo 14 da LGPD, que estabelece requisitos rigorosos para o tratamento dessas informações.

Segundo Silva, o Palmeiras é um dos clubes que descumprem a legislação ao exigir o registro facial de todas as pessoas, incluindo bebês. A violação se estende, ainda, ao artigo 17 do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), que garante o direito à privacidade, imagem e integridade moral, e ao artigo 109, que proíbe a identificação compulsória de adolescentes, exceto em casos de dúvida fundada.

“Os riscos decorrentes dessas práticas são múltiplos e graves. A coleta indiscriminada de dados biométricos de crianças configura uma forma injustificada de vigilância e datificação, especialmente quando alternativas menos invasivas (como uso de CPF ou RG) seriam suficientes para o acesso aos estádios”, destacou.

Torcedores que forem aos estádios no retorno do Brasileirão terão que usar a tecnologia de reconhecimento facial. (Imagem: André Dias/TecMundo)

Como tornar o sistema mais seguro e eficiente?

Uma forma de mitigar riscos associados ao armazenamento dos dados biométricos é a adoção de criptografia avançada, dificultando acessos indevidos às informações coletadas. O pesquisador destaca, ainda, a necessidade de anonimizar os dados.

Ele defende, também, a exclusão dos dados após o evento, exceto em casos nos quais essas informações sejam necessárias. Outra maneira de melhorar a segurança é a realização de auditorias independentes para verificar a conformidade com a legislação e identificar possíveis vulnerabilidades no sistema.

“É importante lembrar que proteção de dados pessoais não é a mesma coisa que segurança da informação. Não é uma discussão se os dados estão seguros, mas se as pessoas são livres para dispor dos seus dados e se são livres para fruir de direitos sociais, como cultura e esporte, sem serem obrigadas a ceder algo tão sensível”, opinou.

Vinícius também sugere medidas como ajustar os mecanismos de consentimento de coleta, focando em linguagem acessível e opções reais de escolha, e fiscalização efetiva da Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANPD). Em casos de abusos ou violações, clubes e empresas estariam sujeitos a penalidades aplicadas pelo órgão.

Criar canais para que os torcedores exerçam seus direitos, incluindo acesso, retificação e solicitação de exclusão de dados, e a proibição da coleta de dados de crianças e adolescentes, são outras mudanças recomendadas para tornar o uso da tecnologia mais ético e legal.

“Eles vão cometer erros”

O coordenador da Rede de Observatórios da Segurança e do Panóptico, Pablo Nunes, tem opinião semelhante. De acordo com ele, os debates envolvendo a implantação da tecnologia não tiveram a participação de torcedores nem pesquisadores, acontecendo de maneira acelerada e sem salvaguardas relevantes.

Dessa forma, ele acredita que o sistema já nasce fadado a cometer erros de identificação e aos vazamentos, devido à falta de parâmetros legais. “O que a gente fala hoje nesse cenário de hiperconexão é que bancos de dados massivos serão vazados, fatalmente. Não é se, é quando serão vazados”, alertou.

Em um cenário de vazamento, esses dados biométricos seriam aproveitados por quadrilhas que “roubam” rostos para fraudar sistemas de autenticação facial. Recentemente, a Polícia Federal desmantelou um grupo que invadia contas Gov.br e tem monitorado outros com métodos semelhantes.

Nunes também destaca que uma das premissas da tecnologia, a de combater os cambistas, não tem funcionado nos estádios com biometria, sendo este um caso mais de investigação policial. Em postagens no X, é comum encontrar cambistas afirmando haver formas de driblar o reconhecimento facial.

O especialista também lembra que a identificação de acusados de racismo e outros crimes independe da biometria, refutando outra justificativa de quem defende o mecanismo. Além disso, Pablo destaca que setores nobres, como camarotes, não exigem o reconhecimento facial em alguns estádios, reforçando preconceitos.

O que pensam os torcedores?

Principais impactados pela mudança, os torcedores têm visões diferentes a respeito da biometria facial nos estádios. Enquanto alguns defendem a tecnologia, outros acreditam que ela não trará mudanças significativas na segurança nem no acesso aos jogos.

A reportagem do TecMundo esteve no jogo Cruzeiro x Palmeiras, no Mineirão, em Belo Horizonte (MG), pela 10ª rodada do Brasileirão 2025, e ouviu torcedores sobre o tema. O estádio já iniciou os testes em um de seus setores, e deve ampliar o uso agora.

O professor, jornalista e pesquisador, Igor Figueiredo, afirmou não gostar da ideia de controle de pessoas atrelada à tecnologia. Para ele, o sistema pode até ser útil, porém deve ser “usado com parcimônia e cuidado”, por se tratar de uma ferramenta com problemas de viés algorítmico.

Alguns torcedores preferem continuar usando os ingressos convencionais. (Imagem: André Dias/TecMundo)

Igor ressalta a importância do gerenciamento dos dados por pessoas que tenham formação e capacidade para lidar com as inconsistências do sistema. “A proteção de dados também deve ser uma preocupação, a venda de informações biossociais, por exemplo, deve ser proibida”, afirmou.

A designer gráfica, Melissa Gadelha, comentou que prefere o método atual, com ingresso via QR Code, mas vê a tecnologia como interessante, especialmente para identificar foragidos. Ela também afirmou ter um sentimento misto em relação ao compartilhamento dos dados e acredita que “testes mais rigorosos” deveriam ser feitos antes da ampliação.

O que diz a ANPD?

Ao TecMundo, a ANPD informou que acompanha a implantação da tecnologia nos estádios, tendo instaurado processo de fiscalização contra 23 clubes para averiguar o tratamento dos dados biométricos dos torcedores, especialmente em relação aos menores de 16 anos.

Também foram feitas solicitações de regularização sobre a disponibilidade de informações claras, detalhadas e acessíveis, divulgando como esses dados são tratados nas plataformas de venda online de ingressos. Os documentos encaminhados pelos times estão atualmente em análise.

Sobre a possibilidade de vazamentos e o viés algorítmico, a agência afirma ter iniciado estudos para estabelecer parâmetros e orientações para garantir o tratamento legítimo e seguro dos dados. Em casos de vazamentos e abusos, o órgão orienta procurar os responsáveis pelo controle e armazenamento e/ou as autoridades policiais.

A ANPD possui uma página dedicada a orientações sobre como e quando fazer denúncias, que pode ser consultada aqui. No site do órgão, também há cartilhas que auxiliam os torcedores e cidadãos em geral na fiscalização do armazenamento de seus dados.

Palmeiras se posiciona

Questionado pela reportagem, o Palmeiras ressaltou a importância da tecnologia para a segurança dos torcedores e o combate ao cambismo. Quanto à coleta de dados de menores, afirmou que o procedimento segue todas as normas legais.

“O cadastramento facial é obrigatório para todos os adquirentes de ingressos (Avanti ou público geral). O registro de menores de idade é realizado exclusivamente com o consentimento expresso e informado dos responsáveis legais, em estrita conformidade com o artigo 14 da LGPD e com o ECA”, respondeu.

O clube também também destacou que vai ampliar as ações de comunicação sobre a tecnologia a partir da entrada em vigor da obrigatoriedade e que mantém diálogo permanente com a ANPD, atendendo às solicitações e diretrizes emitidas pela agência.

E você, o que pensa a respeito da biometria facial nos estádios? Acredita que ela vai ajudar a melhorar o acesso e a segurança, além de acabar com a ação de cambistas? Dê a sua opinião nas redes sociais do TecMundo.

*Com colaboração de Carlos Palmeira.

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