Em O Agente Secreto, novo filme de Kleber Mendonça Filho estrelado por Wagner Moura, o suspense político e o realismo histórico se misturam a elementos do imaginário popular brasileiro.
Um dos momentos mais impactantes do longa acontece quando uma perna é encontrada dentro da boca de um tubarão e, a partir daí, passa a assombrar as ruas do Recife.
O que poderia soar como um delírio surrealista é, na verdade, uma homenagem a uma das lendas urbanas mais emblemáticas de Pernambuco: a Perna Cabeluda.
A figura folclórica, que já apavorou gerações de recifenses, ressurge no cinema como uma metáfora da violência, do medo e da repressão que marcaram o Brasil durante a ditadura militar.
Com essa mistura entre o real e o mítico, Kleber Mendonça mais uma vez transforma o Recife em palco de um terror profundamente brasileiro em que o medo não vem de monstros sobrenaturais, mas das sombras da própria sociedade.
Mas, afinal, como surgiu a infame Perna Cabeluda? Vejamos!
A origem da Perna Cabeluda e seu impacto cultural
A história da Perna Cabeluda começou a circular pelas ruas do Recife nos anos 1970, período em que o país vivia sob censura e perseguições políticas. Segundo os relatos, tratava-se de uma perna peluda, desgovernada e sem corpo, que corria pelas madrugadas agredindo quem encontrasse pelo caminho.
Dizia-se que a criatura atacava especialmente homens bêbados ou desavisados, aplicando chutes violentos e desaparecendo logo em seguida. O boato se espalhou rapidamente, alimentado por programas de rádio e jornais locais, até virar parte do folclore urbano pernambucano.
Com o tempo, a lenda ganhou contornos simbólicos: para alguns, era uma forma de expressar o medo coletivo em tempos de violência e repressão; para outros, um retrato das ansiedades e tensões de uma cidade que convivia com o autoritarismo e a desigualdade.
Assim como outras figuras do imaginário popular, a Perna Cabeluda refletia um Brasil que ria e temia de si mesmo ao mesmo tempo.
A presença da lenda da perna em O Agente Secreto
No filme, Kleber Mendonça Filho faz da Perna Cabeluda muito mais do que um easter egg regional. A criatura surge após a descoberta de uma perna dentro da boca de um tubarão, uma cena simbólica e perturbadora que marca a virada da trama.
A partir desse momento, o Recife do longa é tomado por uma força invisível e aterrorizante, que parece ecoar o medo político e social da época.
A lenda é usada como metáfora visual e narrativa: a perna sem corpo representa o poder que persegue, pune e controla sem rosto, uma alegoria perfeita para o Estado durante a ditadura militar.
Assim, o elemento fantástico se mistura ao comentário político, transformando o sobrenatural em um espelho das tensões sociais.
Wagner Moura, no papel principal, atua em meio a esse cenário de paranoia e desconfiança, onde o terror folclórico se confunde com a brutalidade institucional. É uma das formas mais engenhosas que o cinema brasileiro recente encontrou para falar de trauma histórico e memória coletiva.
Entre o absurdo e a crítica social
A Perna Cabeluda, dentro e fora das telas, representa o poder do imaginário popular em traduzir os medos de uma época. Ao reviver a lenda, Kleber Mendonça Filho reafirma que o folclore não é apenas um conjunto de histórias antigas: é uma linguagem viva que reflete o espírito de um povo.
Em O Agente Secreto, a criatura funciona como elo entre o realismo político e o horror simbólico, mostrando que o absurdo muitas vezes é a forma mais fiel de retratar a realidade.
A perna peluda que chuta e foge é menos um monstro e mais um sintoma: o retrato grotesco de um país marcado por censura, vigilância e violência invisível.
Ao final, a mensagem é clara: o medo da Perna Cabeluda nunca desapareceu. Ele apenas mudou de forma, encontrando novas maneiras de assombrar quem vive sob a sombra do autoritarismo.