O gamer brasileiro não tem paz. Em meio a títulos que não são lançados por aqui e os aumentos de preço dos jogos, para muitos o ping de servidores de jogos online é acima do máximo aceitável para uma boa experiência. Há algum problema crônico com a Internet brasileira ou os fabricantes dos jogos têm deixado de investir em nossa região? Investigaremos juntos os players desse mercado para descobrir o que está em jogo quando se fala de ping no Brasil.
Precisamos antes desnudar essa metonímia tão popular: ping é o nome do teste que mostra um número chamado de latência, apresentado na unidade de milissegundos (ms). O ping é a régua e a latência é o objeto mensurado. Leitores assíduos dessa coluna já sabem que a Internet como tecnologia teve um berço militar e o ping é um deles. Sua primeira versão foi criada em 1983 por Mike Muss enquanto pesquisador do Laboratório de Pesquisa Balística do Exército dos EUA. Se eu fosse colega de laboratório dele, o convenceria a usar o nome pong em vez de ping. Consigo convencer você também que esse nome seria o mais apropriado.
O teste do ping realiza duas tarefas simultâneas: inicia um cronômetro e envia ao menos um pacote para o destino com um endereço IP. No conteúdo desse pacote há a instrução para que assim que recebido pelo destinatário seja imediatamente devolvida uma confirmação de recebimento. Quando essa nova mensagem chega de volta ao seu remetente, o cronômetro é parado e o tempo marcado em milissegundos é exibido. Como num tênis de mesa em que se manda a bola com ping para o oponente e se cronometra o tempo que ela leva para voltar fazendo pong. O ping mensura o tempo total de ida e volta de pacotes pela rede (round trip time).
Esse número importa para muitos gamers pois se muito elevado, faz com que os jogadores não partilhem exatamente do mesmo tempo no mundo virtual. Alguns ficam numa bolha do passado reagindo a eventos que já aconteceram para os demais jogadores. Aqueles que usufruem de uma baixa latência para o servidor possuem notável vantagem competitiva contra aqueles que estão com latência significativamente mais alta.
Se a informação demora a chegar via rede para aparecer na tela do jogador, o gatilho é pressionado depois que o alvo saiu da mira, o chute é dado quando a bola já foi roubada do pé, o piloto puxa inutilmente o manche quando o avião já se esborrachou na pista. Cada piscar dos seus olhos enquanto me lê demora 300 milissegundos, o mesmo que 0,3 segundo. Mais que um terço disso, 100 ms, já inviabiliza que um jogador possa interagir em tempo real com os demais em partidas online.
O fator que mais contribui para a latência na rede é a distância total percorrida por essa comunicação. Logo, a localidade geográfica da origem e destino da comunicação também importa muito para esse fator. Como quase a totalidade do tráfego da Internet escoa por cabos de fibra ótica ancorados nos postes nas calçadas e nas margens de rodovias, um bom palpite para prever a melhor latência entre dois pontos é avaliar a distância rodoviária em quilômetros entre eles. Assim como a luz no vácuo leva 8 minutos para sair do Sol e chegar até a Terra, a cada 100 km percorridos na fibra ótica leva-se 1 ms em uma média otimista.
Esse otimismo vem do melhor cenário possível: que a ligação entre esses dois pontos seja direta, sem desvios, o que não é o usual. Em grandes distâncias é esperado que o cabo não se detenha nas rodovias e sim entre pelos bairros atendendo empresas por onde passa, aumentando a quilometragem real. Então a dedução da latência pela distância rodoviária tem que ser vista como a menor latência possível e não a esperada.
A única empresa que atua no Brasil no segmento atacadista que publica medições de latência é a operadora EdgeUno. Quem tem do que se orgulhar não tem vergonha de mostrar. Da tabela encontrada no site da empresa, faço uma versão resumida das latências entre Brasília (BSB), Curitiba (CWB), Fortaleza, Porto Alegre, Rio, São Paulo e Miami. A unidade utilizada é sempre em milissegundos e as medições feitas somente dentro da rede da própria empresa:
Rio de Janeiro e São Paulo são ligadas pela Rodovia Presidente Dutra em cerca de 500 km repletos de fibra ótica. A ligação direta entre as duas cidades é manifestada na tabela, com 6 ms, bem próximos dos 5 ms da regra de três que te ensinei a estimar. No cenário otimista, Brasília e Curitiba que estão a 1.338 km entre si deveriam ter 13 ms de latência, mas se observa o dobro, evidenciando que não há telecomunicação direta entre essas cidades pelo caminho rodoviário mais curto. Desses data centers da tabela até chegar à sua casa, é esperado que a latência aumente ainda mais
Quando me perguntam qual é o aplicativo mais eficaz para se reduzir a latência, eu costumo responder: Airbnb. Você precisa se aproximar geograficamente do servidor para o ping reduzir. Como viajar para jogar online parece um disparate, a montanha tem que vir até Maomé. Os fabricantes dos jogos têm que implantar servidores geograficamente o mais próximo de seus jogadores e é nessa missão que essa indústria falha.
O mínimo esperado de um fabricante que valorize os gamers brasileiros é ter um servidor em São Paulo, que além de ser a região mais populosa, ela possui o maior ponto de troca de tráfego de Internet do mundo, o IX.br. Mas como vimos, somente quem está a poucos quilômetros da capital paulista desfrutará de baixa latência. O segundo ponto de interesse é o de Fortaleza (o escolhido pelo Tiktok), que possui farta oferta de data centers e cabos submarinos.
Um testemunho da importância da distribuição geográfica é o mapa oficial contido no site de Peering do Google. Cada ponto amarelo representa uma cidade com ao menos um servidor local do Google, servindo majoritariamente conteúdo do YouTube e Google Play e em menor volume os demais serviços da empresa.
A distribuição geográfica é tão grande que não dá para enxergar a costa brasileira no mapa, justamente a faixa territorial onde nossa população está concentrada. As estrangeiras Meta, Netflix, Akamai e as brasileiras Azion, GoCache e Globoplay possuem servidores também distribuídos pelo país. O custo não é elevado e não falta infraestrutura.
O que falta é interesse dos fabricantes e pressão dos gamers brasileiros. Enquanto as vendas estiverem indo bem e a reputação da marca não parecer que está abalada pela alta latência, por que se dariam ao trabalho? Suspeito que influenciadores do ramo evitem cobranças públicas muito contundentes com receio de perderem o bom relacionamento com a marca, como ficar fora de eventos, não receber brindes e até perder patrocínio. Quem defende o interesse do internauta brasileiro coletivamente?
Quando algum fabricante faz a parte dele ao colocar um servidor no Brasil, as grandes operadoras não raramente impedem que seus clientes usufruam dessa proximidade geográfica. A fabricante do Roblox surpreendeu seus jogadores inaugurando um servidor em São Paulo em outubro de 2025. Enquanto para a maioria dos jogadores a latência reduziu drasticamente, para clientes da Claro e da Nio (a nova Oi) a latência para esse servidor apresentou-se como maior do que para servidores no exterior ao longo do primeiro mês.
No caso da Nio, noto que alguns técnicos da empresa são mais sensíveis e reagem positivamente quando relato algum problema de alta latência. É o que ocorreu com o jogo Path of Exile, em que durante uma live fiz o diagnóstico do problema e mostrei como eu o resolveria se eu fosse o gestor responsável da então Oi. Compartilho contigo esse corte da live:
Encerrada a live, recebo uma mensagem de um técnico da operadora que estava me assistindo ao vivo e mudou o roteamento nacionalmente. Era um mero defeito que foi corrigido quando diagnosticado com meu auxílio. Sou muito grato a esse técnico pelo capricho nesse reparo.
Já para as demais operadoras de grande porte, a alta latência nacional não costuma ser um defeito e sim uma estratégia. Essas empresas se recusam a trocar tráfego em todos os pontos de tráfego do IX.br mantidos pelo Comitê Gestor da Internet no Brasil presentes em cada uma das unidades da federação. Excetuando os de SP, RJ e CE onde se cobra um valor simbólico, nos demais estados a conexão é gratuita, pois o CGI.br é uma organização sem fins lucrativos como várias outras essenciais para à Internet como já vimos noutra edição dessa coluna.
Essa recusa de uma interconexão de baixa quilometragem a um preço simbólico ou gratuito pelo IX.br por parte das grandes operadoras é uma prática comercial. Tratam como um produto o acesso com baixa latência aos seus clientes de banda larga fixa. As empresas de games, streaming e demais conteúdos que não aceitam essa oferta são punidas com uma troca de tráfego destinado a esses clientes brasileiros através dos EUA com alta latência. Criam o problema da alta latência para vender a solução.
Isso faz com que a comunicação, em vez de se dar regionalmente, tenha que percorrer mais quilômetros até outro estado e até passar por outro país. Como já aprendemos, quanto maior a quilometragem percorrida, maior será a latência detectada no ping.
Essa prática, em vez de fiscalizada e punida, está sendo estimulada pela Anatel em suas tentativas pró-ativas de implantar o que ela chama de “Regulamento de Deveres dos Usuários”, o que no exterior é chamado de fair share.
A agência atua como uma espécie de corretora que permite às operadoras cobrarem um pedágio das empresas de conteúdo para trocarem tráfego com internautas brasileiros, mesmo quando essas empresas de conteúdo já oferecem conexão à elas gratuitamente pelo IX.br ou custeam seus próprios cabos submarinos, a exemplo do Google e da Meta. Precisamos nos posicionar contra essa proposta de regulamento.
Então, caro gamer, o jogo não está perdido. Espero ter o ajudado a reconhecer quais são os inimigos e qual é o castelo do chefão. Tanto empresas como o poder público são muito reativos quando a pressão popular é grande e ruidosa. Se fizerem barulho e cobrarem as medidas corretas, principalmente através de seus influenciadores, elas irão reagir na direção do seu interesse. Mais que saber os truques dos seus jogos favoritos, é importante ficar por dentro de como a internet funciona, um tema recorrente nesta coluna. Espero vê-lo na edição da próxima semana com a menor latência possível.