O Brasil tem síndrome de médicos falsos: não é novidade o assunto, visto que o noticiário trata frequentemente de casos do tipo. Um levantamento realizado pelo Conselho Federal de Medicina (CMF) em 2024 afirma que, nos últimos 12 anos, foram registrados pelo menos dois casos de exercício ilegal da medicina no Brasil todos os dias.
Vale notar que esse número provavelmente é subnotificado, já que enumera apenas casos denunciados. Imagine agora quantos profissionais estão por aí, atendendo em clínicas, hospitais ou receitando tratamentos milagrosos nas redes sociais.
O cenário da atuação dos falsos médicos no Brasil
De protocolo de desparasitação, soroterapia a dietas altamente restritivas, as redes sociais estão cheias de especialistas com milhares de seguidores que publicam diariamente tratamentos revolucionários, mas sem qualquer comprovação científica.
O TecMundo conversou com Ana Bonassa, mestra e doutora em ciências com ênfase em Fisiologia Humana pelo Instituto de Ciências Biomédicas da Universidade de São Paulo (ICB-USP) e Ph.D. em Metabolismo Energético no Instituto de Química da Universidade de São Paulo, e com Laura Marise, mestra e doutora em Biociências e Biotecnologia Aplicadas à Farmácia pela Faculdade de Ciências Farmacêuticas de Araraquara e Ph.D. em Bioquímica pelo Instituto de Química da Universidade de São Paulo (IQ-USP).
Elas são as idealizadoras do ‘Nunca Vi 1 Cientista’, que é um projeto que toca na crescente presença de falsos médicos nas redes sociais e os perigos da desinformação científica para a população.

Quem nunca se deparou com um vídeo de dicas de saúde e bem-estar enquanto navegava pela for you do Instagram ou TikTok? Bem, alguns desses conteúdos chamativos e bem elaborados nem sempre são produzidos por profissionais sérios da área da saúde.
A desinformação nas redes sociais e os falsos especialistas
De acordo com Laura Marise, muitos desses conteúdos com milhões de visualizações e likes não são produzidos por especialistas em saúde ou médicos em fase final de residência. “A maioria dos estudantes de medicina não chega a ir para residência, isso quando conseguem terminar a faculdade. A gente estava conversando com médicos que atuam na divulgação cientifica e, como eles pontuam, a residência é um negócio que exige muito tempo e paga pouco.”
Ainda, segundo Laura, esses supostos médicos das redes sociais cobram em média R$ 1.000,00 a R$ 1.500,00 por uma consulta e, com isso, em 5 horas de trabalho, eles ganham o que o residente ganha no mês. “É um negócio bem desproporcional que tem crescido bastante e a gente vê muitas pessoas sem nenhuma formação mesmo”, comenta.
A residência médica é uma etapa importante para quem cursa a faculdade de medicina, pois é nela que o futuro profissional pode se especializar. Sobre isso, Ana Bonassa revela que uma parte das pessoas que atendem como especialistas nas redes sociais são clínicos gerais que não passaram pela residência médica: “Esses profissionais não colocam, por exemplo, que são dermatologistas, mas sim dermatologia”, indicando uma especialização, mas que é falsa.
O risco da “especialização” sem formação
Outro dado que chama a atenção é que muitos desses médicos influencers são formados em áreas sem qualquer relação com a saúde e possuem uma equipe geralmente composta por clínicos gerais que atende durante as consultas.
“A pessoa fala um monte de coisa na internet que dá a entender que ela tem formação, mas ela não tem. No perfil, a pessoa divulga que tem pacientes, programas e tratamentos para saúde, mas após contratar o serviço, o paciente é atendido por outra pessoa e não pelo médico influencer”, diz Ana Bonassa.
A venda casada e a vulnerabilidade dos jovens nas redes sociais
E se engana ao pensar que só adultos e idosos são o alvo dos falsos médicos nas redes sociais. A geração Z, que é hiperconectada, também é vítima do mercado de influência. Laura relembra o caso da adolescente de 13 anos, Amelia Gregory, da Inglaterra, que usou o produto com retinol e quase perdeu a visão por conta de uma dica de beleza que viu no TikTok.
Um recente estudo liderado por cientistas da Northwestern Medicine e divulgado pela American Academy of Pediatrics alerta que crianças e adolescentes estão mais suscetíveis a se deixarem seduzir por embalagens criativas e ingredientes que parecem sofisticados — além da presença constante em redes sociais como validação do próprio produto.
Crianças e adolescentes estão expostos a vídeos que exaltam a magreza e uma suposta perfeição corporal, um padrão de beleza praticamente inalcançável e a substituição de alimentos saudáveis por suplementos sem comprovação científica. “Os pais têm que ficar realmente muito em cima disso para evitar danos físicos à saúde, aos adolescentes”, reforça Laura.
De atores a médicos gerados por Inteligência Artificial
Em 2024, o CREMESP (Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo), emitiu um alerta sobre atores que se passavam por médicos e promoviam a venda de produtos milagrosos sem registro na ANVISA.
Com o crescente uso da Inteligência Artificial, Ana e Laura dizem se sentir preocupadas que a tecnologia seja usada para aplicar golpes nas redes sociais. “Atualmente a gente consegue pegar que é conteúdo fake de feito com IA. Mas isso hoje em 2025, daqui a um ano ou dois, a inteligência artificial vai ser perfeita e indistinguível.”, comenta Ana.
Ana ainda ressalta que, quando uma informação está muito disseminada nas redes, ela se torna uma crença e dificilmente as pessoas mudam de ideia, e por isso o combate à desinformação científica é tão importante.
Laura e Ana também falam sobre jornalismo. Elas destacam que a profissão é fundamental para o combate das fake news científicas, mas que, nos últimos anos, na pressa de publicar a matéria, muitos veículos acabam não verificando as fontes e, com isso, contribuem ainda mais com a desinformação — como foi o caso dos plásticos pretos nos utensílios de cozinhar causar câncer.
“Quando as matérias foram publicadas, já existia a correção do artigo científico do erro matemático, anulando completamente a conclusão do artigo. Nenhum portal que publicou a matéria foi atrás disso e as pessoas jogaram fora seus utensílios de cozinha que não são baratos. Muitas pessoas investiram dinheiro naquilo e geram um resíduo maior de lixo. Então, esse é um exemplo de como aquela informação teve o poder de mudar e influenciar uma decisão”, comenta Laura.
O combate à desinformação: qual é o papel da mídia e das plataformas digitais?
Para as divulgadoras científicas, além da imprensa, desempenhar um papel mais educativo para a população, as plataformas digitais e o Conselho Federal de Medicina (CFM) precisam fiscalizar mais a participação de profissionais da saúde nas redes sociais.
A ANVISA também precisa enrijecer um pouco as regras sobre a divulgação de medicamentos e suplementos, afirmam.

Ana e Laura apontam que nem sempre um conteúdo denunciado por passar informações falsas é excluído da plataforma e que, em alguns casos, esses falsos médicos pagam por depoimentos que alegam a eficácia do produto. “Tem pessoa que vende depoimento por R$ 20,00”, pontua Ana.
Apesar do cenário geral não ser muito positivo, existem formas da população se proteger e denunciar a prática ilegal da medicina, seja ela realizada em hospitais e clínicas ou nas redes sociais.
Como identificar e denunciar os falsos médicos
No site do Conselho Federal de Medicina (CFM) é possível verificar se um profissional é realmente médico ou não, por meio das seguintes informações:
- Nome completo do médico;
- Foto do profissional;
- Número de inscrição profissional (CRM) e quando se inscreveu como médico;
- Registros de Qualificação de Especialidade (RQEs), caso tenha;
- Em que estado o profissional atua;
- Estabelecimento de ensino superior onde se formou e quando.
Caso ainda desconfie se o profissional é de fato formado, o paciente pode confirmar se a foto do profissional que aparece no sistema do CFM corresponde ao profissional que prestou atendimento, seja presencial ou online.

Se ficar confirmado o exercício ilegal da medicina, o paciente precisa registrar uma denúncia no Conselho Regional de Medicina (CRM) de seu estado. A denúncia pode ser feita pessoalmente na sede do CRM ou nas delegacias regionais da instituição.
O paciente também pode enviar a denúncia por carta ou email, mas é importante que, independentemente da forma como a denúncia seja realizada, ela contenha a assinatura e documentos que comprovem a atuação do falso médico.
- Confira: 9 dicas para identificar fake news
O paciente ainda pode registrar um boletim de ocorrência para que as autoridades locais investiguem o caso e tomem todas as medidas necessárias para que o falso médico não continue atuando.
Para Ana e Laura, além do combate à desinformação científica nas redes sociais, é preciso estimular o letramento científico da população para que ela mesma possa confirmar a veracidade das informações e assim se proteger e evitar cair em golpes de falsos médicos.
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