É a realidade, mas não um reality show. É uma prova de resistência, mas não por um prêmio de R$1 milhão. Empresas têm abandonado o atendimento por telefone e empurrado clientes para a gincana do chat. Superada a prova de obstáculos ao convencer o robô de que você precisa ser atendido por um humano, a prova de resistência da fila de espera começa. Quando você menos espera é desconectado. Por que decisões burras sobre o atendimento online te fazem de otário e como isso poderia ser evitado?
19º, 18º, 12º, 5º, você é o próximo da fila. – “Meu nome é Judite e serei a responsável pelo seu atendimento. Em que posso estar ajudando [sic] o senhor hoje?”. Você terá que repetir tudo que escreveu tanto para o robô como durante a espera. Judite parece ser incapaz de ler o que foi dito antes.
O cumprimento dela acendeu um pavio curto e a bomba logo explode. Embora você tenha esperado por horas a sua vez, Judite só te aguarda por alguns segundos: – “Por falta de resposta estarei encerrando [sic] esse atendimento.” – e todo seu esforço foi em vão. Você foi desclassificado.
A experiência que aqui descrevo une torcedores de todos os times, adeptos de todo o espectro político, fãs da Apple e Android, de Xbox e PlayStation, de Windows e Linux, gregos e troianos. Numa era em que a inteligência artificial já passa no teste de Turing, por que o atendimento ao cliente por chat ainda é nada inteligente e não natural?
Durante a pandemia do COVID-19 eu era o recém-contratado diretor de tecnologia do que hoje é um dos 10 maiores provedores de internet do país. Na primeira semana de lockdown, nosso tráfego cresceu 30%, o número de novas instalações por dia mais que dobrou, a quantidade de postos de trabalho no call center caiu pela metade em razão das regras de distanciamento e o time de atendentes minguou com o recorde de dispensas médicas. Nosso suporte técnico entrou em colapso pouco antes de uma mudança no organograma o trazer temporariamente para a minha diretoria. Herdei um baita problema.
Sempre fui devoto de Gutenberg. Prova disso é eu ter essa coluna em texto num veículo que pertence a um jornal numa época em que qualquer um tem seu próprio canal de TV na Internet. Essa devoção alimentou minha fé de que a solução do problema do colapso era o atendimento por escrito, para a incredulidade e espanto de meus pares e liderados da época.
Meu antecessor no cargo já havia implantado uma plataforma de atendimento multicanal, incluindo e-mail, WhatsApp, X, Instagram, Facebook e um pop-up de chat em nosso portal do cliente. Mas a solução estava quase abandonada. O índice de satisfação tanto dos clientes atendidos por ela como dos atendentes que a utilizavam era baixíssimo. Identificando-me como trabalhador de serviço essencial com o crachá da empresa nos bloqueios policiais, cruzei a maior cidade do país por ruas desertas até o call center para investigar o problema in loco.
O primeiro erro era evidente. Queriam que a mesma pessoa atendesse clientes por chat e por telefone simultaneamente. Num lugar chamado de call center, o telefonema era visto como nobre e o chat como vulgar. Separei o estado da minha igreja formando uma equipe exclusiva de atendimento por texto reportando diretamente a mim, não a hereges.
De máscara N95 e a uma distância sanitária de um metro e meio, olhando por cima dos ombros da minha nova equipe, descobri com um cronômetro que a atividade que mais tomava tempo era esperar o cliente responder. A quantidade de atendimentos concluídos por hora chegava a ser menor que um. Uma performance desastrosa! Algo precisava mudar.
É aqui que surge em muitas empresas a decisão burra de UX: desconectar clientes que demoram a responder. Além disso demonstrar que para a empresa o tempo do atendente é mais valioso que o tempo do atendido, faz com que o cliente que antes tinha um único problema agora saia com dois: o problema antigo e o novo de ter que pausar sua vida para participar da gincana da fila do atendimento. Nesse modelo, há um paradoxo: pôr mais atendentes não aumenta a capacidade de atendimento.
O erro dessa vez é tentar conduzir o atendimento online numa modinha: a da conversa síncrona. Quando a comunicação corporativa era baseada no e-mail (de 1971 até meados de 2009), as mensagens tinham início, meio, fim e anexos. Dizia-se logo na primeira mensagem um relato completo do problema e se encerrava pedindo o que se desejava.
Ineficaz? Nem um pouco: as pirâmides do Egito, o pouso na Lua, as empresas listadas na bolsa de valores, a fundação de nosso país. Tudo isso foi criado e executado por textos de comunicação assíncrona.
Imagine Dom Manuel I vendo as naus partirem de Lisboa em março de 1500 e após 88 dias de espera, voltar a Portugal uma mensagem assinada por Pero Vaz de Caminha que diz apenas:
“Mui Alto e Poderoso Rei de Portugal,
Bom dia.”
Seria uma estupidez. A mesma cometida a todo instante neste século ao se tentar a conta-gotas contar ou pedir algo a alguém.
Caminha não esperou o rei responder o “bom dia” numa carta com outros 88 dias de navegação para contar o que viu por aqui. Na primeira mensagem em 8 páginas manuscritas, descreveu a abundância das terras encontradas e a inocência dos indígenas. Grandes feitos estão ao alcance de mensagens trocadas assincronamente, não necessariamente em tempo real.
Saindo da internáutica e voltando para a internética, na minha equipe não precisei reinventar a roda e sim apenas girá-la. Treinei o time a fazer aquilo que uma Judite não faz: girar a roda (scroll wheel) do mouse com o dedo indicador e ler o texto acima da última mensagem. Lá está não só a conversa do cliente com o último atendente como a conversa inicial com o robô em que o problema foi descrito. Às vezes até o óbvio precisa ser ensinado. As plataformas de atendimento não apagam essas mensagens anteriores.
Treinada a equipe para sustentar conversas assíncronas, consegui manter os atendentes sem ociosidade. Ao responder um cliente numa janela, sem esperar que ele respondesse, bastava pular para a próxima que continha uma mensagem não lida de outro cliente e interagir com ele. Um jogo mais parecido com um xadrez em que cada um move uma peça na sua vez do que com um tênis de mesa, em que a bola tem que ser rebatida imediatamente.
O milagre veio rápido. Na primeira semana, cada atendente da equipe de chat concluiu com êxito 4 vezes mais chamados do que cada atendente por telefone. Está aqui desnudada a fantasia de que comunicação em tempo real é a mais produtiva e econômica. Uma reunião de 1h com quatro presentes não dura apenas uma hora e sim as quatro horas trabalhadas de cada pessoa simultaneamente.
O fenômeno é simples de explicar: enquanto um funcionário atende um cliente por vez ao telefone, no chat dezenas são atendidos simultaneamente. Se existem 20 clientes com mensagens não lidas na tela de um atendente, ao responder ao vigésimo, o atendente volta para o primeiro cliente que respondeu e a conversa prossegue. A ronda de um atendente pelas janelas de chat era circular.
Outros fatores contribuíram para a eficácia desse método, como poder receber fotos dos clientes das mensagens de erro de sites ou vermos exatamente quais luzes estavam acesas no roteador. A menor quantidade de hostilidade recebida dos clientes pelos atendentes também aumentou o ânimo da equipe. Assédio moral é comum por telefone e incomum por texto. Porém, o principal fator foi a conversa assíncrona.
Quando o suporte técnico saiu da minha diretoria de tecnologia e voltou para a de operações, meus fiéis perderam seu messias. A nova liderança preferia liderar ouvindo em vez de lendo. Não tinham tanto traquejo como o meu para ensinar o contingente típico de um call center a interpretar o que lê e pensar antes de responder. Ensino exige carinho.
Fé é a capacidade de acreditar em algo na ausência de evidências que o sustente ou diante de uma prova que o refute. Milagre é um acontecimento raro e surpreendente para o qual não se encontra uma explicação racional.
Embora essa minha empreitada tenha sido desfeita, não se trata mais de fé ou milagre. Tenho evidências do bom resultado do atendimento assíncrono por texto, consigo explicá-lo racionalmente. Essa experiência do usuário (UX) está ao alcance de qualquer gestor que se disponha a pensar no usuário e deixar de fazer burrice. Já pensou em adotá-la na sua empresa? Ei, você ainda está lendo? Alô?! Irei desconectá-lo dessa coluna por falta de resposta.